imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

sábado, 10 de dezembro de 2011

resumo da palestra SIB - 08/12/2011

Aqui está um resumo da minha palestra "um quadrinhista na história", parte do evento "IlustraBrasil!", sediado na Matilha Cultural, em São Paulo. Muito obrigado aos que ajudaram e aos que compareceram, enfrentando o trânsito de final de ano, já complicado, agravado ainda pela chuva, festa e passeata na Paulista.
Aos que não puderam ir, ou para quem foi e gostaria de ter um resumo, publico este roteiro. Não o segui fielmente, na hora segui alguns desvios, por improviso ou devido a perguntas interessantes que aparecem.
O texto não é lá essas coisas, são notas que fiz para mim mesmo. Está meio seco e esquemático, vou deixar assim porque a prancheta me chama...

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roteiro palestra SIB:
como recriar o Passado.
1) História: conceito de "o que aconteceu" e "o que acontecia".
"o que aconteceu" = fatos, marcos, mudanças; atos importantes de celebridades, líderes; fatos que não se repetem.
a História como sucessão de acontecimentos, ações e reações, causas e efeitos, progresso, em linha.
(abaixo um exemplo de "o que aconteceu" = o nascimento de d.Pedro II, fato que não se repete)

"o que acontecia" = ações que se repetem, padrões de vida social, costumes, moda, manias; personagens famosos e anônimos;
a História como um lugar no´passado: "no tempo dos romanos", "no tempo dos castelos medievais".
registro do modo que as pessoas viviam.
(na cena abaixo, feita para a versão de Debret para o canal Futura, não está acontecendo nada de importante, é um dia como outros no largo do Paço "no tempo do Rei").

Esta segundo modo de História é essencial ao ilustrador e quadrinhista.
Não é só o pano de fundo: é a matéria mesma da História - a vida, as pessoas - que a "História dos fatos" vai afetar com suas mudanças.
Não é possível ilustrar "o que aconteceu" sem a referência de "o que acontecia" e "como era".
2) ESTILO DE UMA ÉPOCA
"o que acontecia" e "como era" tem uma unidade que se expressa num estilo artístico e arquitetônico,
marca de uma época, design de objetos e armas.
(exemplos: santô e belle époque; debret/djoão/império e estilos neoclássico e romântico).
eu utilizei tanto no desenho da HQ, como no design da capa e molduras.
(abaixo, o "estilo metrô" parisiense, típico da belle Époque - viarada do século XIX para XX, pré-Primeira Guerra mundial, usado em "Santô e os Pais da Aviação").



 3) GEOGRAFIA
Na geografia temos os marcos permanentes. Ou quase, porque de vez em quando demolem um morro e mudam a paisagem...
De qualquer modo, quando represento lugares, tenho em mente o reconhecimento de ver algo familiar, e a surpresa de ver como era diferente. As duas coisas juntas, o permanente e o transitório.
Essa é a graça.
(na cena abaixo, de "D.João Carioca", o Corcovado, sem o Cristo).

4) TECNOLOGIA
transportes; meios de comunicação; iluminação noturna.
Transportes - não só a aparência das coisas é outra; o transporte e a comunicação afetam a noção de tempo
(atravessar o Atlântico em dois meses de navio; receber uma mensagem por um correio a cavalo).
tecnologia militar - armas de fogo, como se atira com um arcabuz ou espingarda de pederneira ou pistola.
Iluminação, fontes de luz: fundamentais para estabelecer o clima de uma época: candeeiros, candelabros, lustres, tochas etc.
calçamento de ruas.
(abaixo, maquetes improvisadas do 14 bis e Demoiselle que usei em "Santô" e um canhãozinho para "D.João").

5) MODA E UNIFORMES
Procuro conhecer a moda geral básica da época.
Ficar íntimo dela, conhecer vários exemplos (e não apenas do meu personagem e do país que estou estudando).
Assim, não vou procurar "moda do Brasil no século XIX", mas a moda européia em geral, nas décadas.
Mesmo que eu tiver uma boa iconografia (ex: Debret), é bom ver como outros artistas mostravam a mesma roupa (nas caricaturas, pinturas e fotografias).
Também é bom assistir filmes que mostrem o mesmo tempo (exemplo: Guerra e Paz, época napoleônica)
Depois, procuro, nas roupas da época, ver que roupa encaixa bem no físico e na personalidade do meu personagem.
Ex: o mesmo uniforme, como veste um soldado:
a) certinho, arrumado, zeloso pelos deveres, "by the book", que segue os regulamentos;
b) acomodado, burocrático, talvez corrupto, que não quer encrenca;
c) fogoso, heróico, de pavio curto;
d) engajado à força no exército;


6) HIERARQUIA E FUNÇÕES SOCIAIS
identificar os papéis na sociedade: quem manda, quem obedece; quem trabalha, quem é servido;
regras sociais de etiqueta; por exemplo, ficar de p[e na sala do trono, ajoelhar diante da passagem do rei pela rua, beijar a mão.
hábitos sociais: andar de braço dado (homens).
Tudo é mostrado: é preciso criar ações que mostrem a importãncia e função dos papéis
(pessoa se curvando respeitosamente).
Roupas que mostrem ou sugiram essas funções.
Criados, empregados, cocheiros, serviçais, secretários: funções de ligação na história - difícil vê-los em pinturas.
Grosso modo, podemos usar nossa experiência moderna para "mapear" o passado:
(vc sempre vai ter: líderes e chefes políticos; polícia ou segurança ou militares; comerciantes; artesãos; funções intelectuais e sacerdotais; trabalhadores braçais trabalhando ou transportando coisas etc)
Mas como se comportam exige pesquisa (gravuras, teatro, cinema etc)
7) TIPOS HUMANOS
Também veremos os mesmos tipos ou a mesma variedade: se tivermos uma coleção básica de tipos humanos,
será fácil desenhar qualquer grupo.
Procuro pensar em opostos: altos e baixos, jovens e moços, crianças e velhos, homens e mulheres;
Baseados na emoção dominante: personalidades expansivas e confiantes X introspectivas;
alegres X severos, carrancudos; descontraídos X formais.


É assim também que crio personagens.
procuro definir que tipo de pessoa ele é;
e a seguir, penso na turma dele, no seu rival ou antagonista, seu parceiro.
Em conjunto, um contrastando com o outro, todos se desenvolvem e se tornam mais nítidos.
Eu conheço cada vez melhor cada personagem (e o leitor também) em contraste com os outros.

7) COMO ORGANIZAR A PESQUISA
Eu sou um pesquisador voraz. É fácil juntar muita informação, especialmente hoje na internet;
é fácil juntar muito dado inútil sobre um assunto, e quase nada sobre outro.
Por isso, recomendo que se faça a pesquisa direcionada pelo roteiro.
Num primeiro momento, pesquisa geral da época: pesquisar "como eram as coisas", mesmo que não tenha relação direta e estrita com os personagens; a tarefa primeira é adquirir familiaridade com aquele mundo.
Depois, seguindo o roteiro mais de perto, procurar apenas as coisas que vão entrar:
Um jeito de simplificar a pesquisa com o ambiente, é concentrar as ações em poucos lugares (se o roteiro permitir), de modo que eu dominar todo o cenário com um olhar.
Chamo isto de "presépio" (*isto esqueci de falar) - esta gravura do Debret é perfeita para isto.
(em vez de visualizar como o blog oferece, clique com o botão direito do mouse e escolha "abrir em uma nova janela" - postei esta aqui bem grande, vale a pena passear e ver os detalhes).

"Presépio": sugiro resumir os ambientes em um cenário reduzido, como se fosse um teatro.
Se a ação acontece em uma cidade como Paris ou Rio, escolher algumas ruas principais.
Isso acontece muito numa produção de filme, por economia.
Na HQ, temos a liberdade de fazer muitas locações diferentes; mas isto amplia muito a pesquisa.
Acho melhor concentrar a ação em uns poucos lugares. É bom para a produção, e também para o leitor, que vai aos poucos reconhecendo os lugares.
Meu Rio de Janeiro imperial se concentra no centro (praça 15) e em alguns palácios.
A Salvador de Jubiabá se concentra no Pelourinho; no bar Lanterna dos Afogados; no morro; numa casa de um bairro rico e mais alguns lugares.
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As minha notas terminam aqui.
Houve várias perguntas interessantes, e uma delas não pude responder, ou melhor, não pude exemplificar com imagens.
Era sobre a diferença entre o meu layout e a arte-final.

Aqui está uma amostra. O layout a lápis, sombreado no Photoshop e com texto  diagramado é o que mostrei para a Lília Schwarcz para sua aprovação. Ela praticamente leu a HQ como será publicada, em termos de narrativa.
Apesar de adiantado, é insuficiente para a finalização. Na hora do nanquim é que percebo os chutes...
Por isso, tudo é redesenhado, preservo mais ou menos a composição, olho de novo o material de pesquisa com olhos mais exigentes, e até surgem algumas idéias novas.
Os balões são feitos à parte, pretendo entregar para a editora em layers (camadas), para que lá possam ajustar ao texto se necessário.
(de novo: em vez de visualizar como o blog oferece, clique com o botão direito do mouse e escolha "abrir em uma nova janela" - postei esta aqui bem grande, vale a pena ver os detalhes).

abraços, spacca


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

OT: Nerdcast X Santos Dumont, história, conhecimento, informação...


(esta foto muito legal foi tirada no fim do espetáculo "Homem Voa?", do grupo Catibrum, com o fantástico bonequinho do Santô baseado na minha HQ - veja mais em http://www.catibrum.com.br/ )

Peço desculpas aos leitores deste blog pela interrupção dos assuntos usuais...
Mas este post precisa ir ao conhecimento de vocês, e de mais gente interessada ou Santos-Dumont ou em História.

Eu já fui bastante fã do Nerdcast Ouvi os primeiros cento e poucos programas, alguns mais de uma vez - um deles uma entrevista brilhante com o Fábio Yabu ensinando o caminho das pedras para lançar personagens em nível mundial (já pude dar a ele os parabéns pessoalmente, no lançamento do MSP-50).

Enquanto a praia era Star Trek, memorabilia pop, RPG, eles nadavam de braçada. Em assuntos mais especializados, como cinema e tecnologia, havia os consultores de plantão (Blue Hand, Eduardo Spohr) , e eventualmente algum convidado. Jovem Nerd e Azaghal fazem uma dupla engraçada, JN sempre eufórico e bom moço, Az. fazendo o papel do cético/arrogante/blasé - é um ótimo personagem. Como não conhecem tudo (é claro), compensam os eventuais erros ("caneladas", devidamente apontadas por ouvintes mais cricas) com bastante galhofa, quase sempre muito bem vinda.

Comecei a cansar do programa quando, em alguns episódios, eles nitidamente não conheciam o assunto nem faziam questão de entender. O sobre Cinema Western (#91) foi de amargar. E sempre são de amargar os sobre História do Brasil - nesses, a filosofia é "mermão, esse assunto é mega-chato e só vou zoar, dane-se a informação". Nesses programas, desaparece 100% a nerdice, velha ou jovem. Eles simplesmente fazem piada para a turma do fundão, para a maioria que não sabe e não quer saber.

De vez em quando eu volto para matar as saudades, ou relembrar por que parei de ouvir.
Foi quando encontrei, hoje, esta inacreditável coleção de caneladas no Nerdcast 287: "Grandes Inventores: Santos Dumont vs Irmãos Wright", o pior NC que eu vi na vida.

Não estou preocupado com "a glória de Santos Dumont", em manter intocada sua imagem, nada disso. Tanto que meu álbum de HQ se chama "Santô e OS PAIS da aviação", para deixar claro que o avião não tem uma paternidade definida. Mas esta questão cabeluda - quem inventou primeiro etc - merece um blog ou um livro só pra ela. Eu considero resolvida (sim, os Wrights voaram antes; sim, era um planador com motor e isso teve muito sucesso; não, eles não fizeram completo mistério; não, ninguém tirou totalmente um avião todo resolvido e eficiente da cachola, nem Santos-Dumont, nem os Wright, e eu aplaudo ambos e os outros pais e tios da aviação) e quem ler meu livro terá acesso, em forma romanceada, a informações verdadeiras.

Voltando ao NerdCast: só o Tucano deu informações corretas. Bluehand mais ou menos, acertou algumas, mas falou umas barbaridades. Mas BH tudo bem, é um legítimo Nerd que não desrespeita o conhecimento, a pesquisa - ele só não teve acesso a mais fontes. Fábio Yabu... poxa, Fábio! De você não vou comentar. Na lista abaixo algumas abobrinhas são suas. Só digo que Paul Hoffman não é "pesquisar fundo", é só um best-seller feito em pouco tempo, cheio de imprecisões. Cuidado com teu novo livro.

LISTA DE CANELADAS DO NERDCAST 287:

1. Santos Dumont não leu "um livro de um alemão sobre balões" - o livro é francês, do aeronauta Lachambre e Machuron, que foram seus mestres de balonismo e construtores dos primeiros dirigiveis.
2. Bartolomeu de Gusmão fez voar um protótipo diante do rei de Portugal, que subiu e incendiou as cortinas.
Vcs têm que distinguir projetos e protótipos, de balões que conseguiram voar e levar gente.
3. SD não ficou horas em cima da árvore. Tem foto dele embaixo, comandando as operações de resgate.
4. "o primeiro balão dele que teve um motor" não foi o numero 3, foi o numero 1 e era um dirigivel.
Os únicos que eram balão-balão foram o "Brasil" e o "Duas Américas", feito anos depois, quando SD já era famoso.
5. o peso do SD só foi importante nos aviões e no "Brasil". Os balões levantavam qualquer coisa e tinham uso militar há mais de 100 anos.
6. Pô, Blue Hand!!!
Os dois irmãos Wrights voavam. Tanto que duas versões do Flyer foram exibidas ao mesmo tempo, um nos EUA e outra em Le Mans, cada irmão pilotava uma, e levavam passageiros!!!
7. o "alemão maluco" que ia dar um prêmio era o francês Henri Deutsch de la Meurthe, magnata do petróleo. (ah, bom, o Jovem Nerd viu a tempo)
8. Santos Dumont de fato estudou pouco, ou não concluiu estudos científicos; não não confiava só no "bom senso" - ele sempre teve colaboradores, engenheiros, que faziam a parte "chata", matemática - Emmanuel Aimé npo tempo dos dirigíveis até 1903; depois, o construtor de aviões Gabriel Voisin e o capitão Ferdinand Ferber (leia Ferbê, JN), este calculou a hélice do 14-bis.
O Wilbur sabia fazer cálculos de engenharia.
9 - Yabu, O 14 BIS NÃO VOOU 15, 20 METROS DE ALTURA!!! o mais alto que ele voou foi 4 metros de altura. A prova era de distância e só tinha que sair do chão.
10. "Orváil", JN?? Orville lê-se Órvil! é só ver um vídeo americano no youtube.
11. Blue Hand, os planadores não eram rebocados do chão. Eles saltavam de um monte natural ou plataforma construída. Faziam assim Otto Lilienthal, Chanute, os Wrights e outros.

A lista continua, mas daqui em diante, reconheço, já é num nível de especialista.

12. O primeiro vôo dos Wright (1903) não teve "catapulta", mas de fato foi auxiliado por um forte vento de proa à beira mar.
Nos anos seguintes, como eles não conseguiram repetir o vôo na planície e com um avião maior, passaram a usar um aparelho de lançamento (uma torre com peso) e foi assim que se exibiram pelo mundo em 1908, com enorme sucesso apesar disso, porque tinha excelente performance de vôo. (OK, Tucano corrigiu).
13. o Flyer continuava voando com "força interna", já que fazia vôos de uma hora. Ele decolava com a ajuda do lançador, mas continuava por si.
14. os Wrights fizeram sim divulgação do primeiro vôo, no Aeroclube da França e em vários jornais. Depois é que decidiram esconder os testes, porque tinham medo de que espiões de Edison e Graham Bell patenteassem.
15. os Wrights não tinham dinheiro para o primeiro motor e construiram um eles mesmos. Fundiu rápido.
16. SD podia imaginar uso bélico sim; era leitor de Julio Verne, e ele mesmo deu declarações e entrevistas sobre uso bélico e bombardeio.
17. não teve queda grave de SD com a Demoiselle. Ele caiu, em virtude de uma vertigem, mas não sofreu muito. O que ele teve foi esclerose múltipla, como lembrou o FreeHand.
De fato, nesse quadro mental grave, a culpa "por ter inventado o avião" criou raízes.
18: BlueHand simplificou: "Quando Getulio tomou o poder, Sao Paulo se rebelou". Não foi bem isso: na Revolução de 30 Getúlio tomou o poder, a Revolução Constitucionalista foi dois anos depois. Mas OK, simplificado mas não totalmente fora.
19. "o SD era visionário porque tinha telefone em casa" - o D. PEDRO II TINHA TELEFONE décadas antes! mas OK, o visionario é porque ele pedia comida pelo telefone no hotel do lado (a casa era pequena e nao tinha cozinha).
20. Os Wrights influenciaram SD sim, indiretamente pelo menos: o formato quadradão "estilo "pipa-caixa"do 14-bis estava "no ar" desde 1903, quando Chanute (mentor dos Wright) exibiu no Aeroclube de Paris fotos dos planadores Wright; em 1905 Gabriel Voisin e Ferber tentaram fazer réplicas do "Flyer"; Voisin se tornou o construtor de todos os aviões de algum sucesso em 1906-1908 na França (Blériot, Delagrange, Farman) e foi colaborador de Santos-Dumont no 14-bis.
Não só isso: a "pipa-caixa" foi inventada pelo australiano Hargrave em 1893; e o formato "canard" (pato), com profundor à frente, tem no 14-bis, no Flyer e nos aparelhos construídos por Voisin.
Por isso, além da origem comum, o design do Flyer passou ao 14-bis via Voisin.

Aqui eu talvez já esteja querendo demais - é um nível PHD... mas que qualquer pessoa que leu os livros mais recentes sobre SD deveria saber.

O Blue Hand eu perdoo, porque é curioso. Mas, poxa, Jovem Nerd, ser nerd não é só babar por action figures e casas de vidro... Para quem vocês fazem o programa, afinal?
De 274 comentários, só UM reclamou do nível superficial (tá mal essa nerdaiada, hein? aê, estão mais para Big Brother):

"Um dos piores nerdcasts ever. não foi humor politicamente incorreto, foi humor “invasão da reitoria da usp”.Pegue um fato, deturpe-o completamente e obrigue os outros a aceitarem seu ponto de vista. Realmente a teoria do espírito de vira láta pegou os participantes forte. Nem consegui ouvir depois.
Não sei se é influência do rafinha bastos ou do matadores de robo gigante, mas o nerdcast era humor inteligente, com ótimas tiradas. agora tá João Kleber.
Aff. Já foi melhor. Tinha classe. (Edson Martinelli, ouvinte)

Não foi tanto pela grosseria da piada da "asfixia masturbatória"... vá lá, é desrespeito mas é uma boa piada pós-Carradine. Mas o parâmetro "invasão da reitoria da USP" é merecido, por relegar à mínima importância o conhecimento, o amor à pesquisa e ao saber.

Não, não, algo de nerd vocês precisam manter! Agora vocês são adultos, marmanjos chegando nos 40 - ainda com medo de parecerem esquisitos? Não, meus amigos, parem de fazer média com a galera do fundão, zelem pelo conhecimento! Ou não falem do que não conhecem.

Bem, da vinheta do desenho animado "estou voando! estou voando", gostei - pensei que era do Dumbo, mas é de um outro em que o personagem morria, e finalmente voava.

Lambda-lambda-lambda, vida longa e próspera e bazinga! pra vocês.
Ou não...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

palestra na SIB e oficina na Quanta


Acontece agora, no início de dezembro, na Matilha Cultural (rua Rego Freitas, 542, São Paulo SP - fone 11. 3256 2636 - próximo ao metrô República)), a palestra "Spacca, um Quadrinhista na História", evento que faz parte da programação do Ilustra Brasil!, promovido pela SIB- Sociedade dos Ilustradores do Brasil.

O evento é gratuito e as inscrições podem ser feitas pelo email secretaria@sib.org.br .

Mostrarei esboços e originais de "as Barbas do Imperador" e pretendo falar sobre como recriar uma época, com seus cenários, moda, tecnologia, usos e costumes.

Palestra SIB/IlustraBrasil! - Spacca, um quadrinista na história
INSCRIÇÕES pelo e-mail: secretaria@sib.org.br
Evento Gratuito
quinta 8 de dez 15:00 – 17:00

E em 2012, farei uma oficina de um dia inteiro sobre "Arquétipos em Quadrinhos - Criação Visual de Personagens" na Quanta Academia de Artes em São Paulo (r. dr. José de Queirós Aranha, 246 - Vila Mariana, SP - próximo ao metrô Ana Rosa).
É necessário que o interessado possua um conhecimento amplo de desenho da figura humana, clássica e/ou de humor.

ARQUÉTIPOS EM QUADRINHOS - CRIAÇÃO VISUAL DE PERSONAGEM - com SPACCA
Dia 21 de JANEIRO - Sábado das 10 às 17h – com uma hora de intervalo
Faixa etária: a partir de 14 anos
Carga horária: 6 horas
Preço: R$ 220,00

Leiam mais em:
http://www.quantaacademia.com/escola/cursos_de_ferias_arquetipos.htm

abraços, sp

domingo, 27 de novembro de 2011

Enfim, d. Pedro II por ele mesmo

(para ver ampliado, clique com o botão direito e escolha "abrir link em uma nova janela"; porque agora, clicando na ilustração, você vai ver menor do que está vendo agora...)

Esta é uma página muito especial.
Até agora (estamos na página 30, de um HQ que terá 112 páginas), o imperador nada mais fez que cumprir os ritos da monarquia e de posar como símbolo vivo da jovem nação americana. Foi educado para ser rei, emancipado, coroado e casado com uma princesa napolitana.
O que pensava, o que queria esse jovem formal, reservado e CDF? Ele era um mistério, e quase um figurante num espetáculo em que ele era o ator principal.
Agora, adulto jovem, começa a botar as manguinhas de fora.

Vemos aí o imperador se recolher aos seus aposentos, pegar um livro - o poema épico "Confederação dos Tamoios", composto em sua homenagem - e fazer algumas anotações do que será seu projeto cultural pessoal, uma das marcas mais fortes de seu reinado: patrocinar estudos e obras artísticas tendo como tema o indígena. Vai começar uma tremenda indiomania, até os novos barões e viscondes adotarão nomes exóticos como Piabuçu, Itapororoca e Jurumirim, "conferindo uma qualidade indígena e tropical aos velhos títulos medievais" (Lília Schwarcz, ABDI, página 178).

A cena tem o ar de uma descoberta, de um estalo, como se o imperador tivesse descoberto, naquele momento, o seu papel, uma maneira de juntar seu rico mundo interior e as necessidades do país que lhe deram para reinar. Não aconteceu necessariamente assim, claro - esta é uma maneira visual de apresentar ao leitor uma tomada de posição, a sua guinada.
No capítulo seguinte ficará mais claro como d.Pedro fará isso na prática. Basta dizer que ele ia na Câmara dos Deputados apenas duas vezes por ano e a contragosto, numa cerimônia a que não podia faltar, com seu manto real e sua murça de papos de tucano, e compareceu a mais de 500 sessões quinzenais no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, até a proclamação da República. O IHGB era o seu xodó, ponto de encontro da intelectualidade do império em torno de seu mecenas, misto de Marco Aurélio com Péricles tupiniquim.

 Este é o núcleo da sua personalidade, que se expandirá em obras.
Aqui ele será de fato rei - comandará, agirá estrategicamente, combaterá adversários - e por incrível que pareça, entre eles um dos mais legítimos indigenistas, José de Alencar (biografado por Lira Neto sob a alcunha de "o inimigo do Rei").

D.Pedro deixou anotado em seu diário que, por ele, teria preferido ser um professor, ou um estudioso das várias matérias a que se dedicou, línguas, mineralogia ou as inovações da ciência.
O mecenato, porém, será a sua "praia", onde ele poderá conciliar os dois mundos em que viveu, o mundo do saber, e a política, entendida por ele, só por ele, como "a arte do bem comum". Todo mundo sabia, e mais que todos as raposas políticas que disputavam os postos do gabinete, os Luzias e Saquaremas, que política é a arte da sobrevivência à sombra do Poder e de puxar o tapete do adversário. Mas para d.Pedro, o que estava em jogo realmente era a construção do país. Talvez para mais alguns também, Mauá, Nabuco.

Mas o que tem o índio a ver com essa história?

É o tema do capítulo seguinte da HQ (capítulo 7 de ABDI). Os estudos e artes patrocinados por d.Pedro floresceram sob a inspiração do movimento do Romantismo.
Na Europa, originalmente, o Romantismo é uma reação contra a razão iluminista e os valores da civilização européia de maneira geral, chegando às vezes à revolta anti-cristã. Exaltava o indivíduo, a liberdade, o frenesi de uma vida curta e as mortes gloriosas, a vida errante e o lugares longínquos, como o "Oriente".
Nos Estados Unidos, um país que se industrializava com rapidez, a onda romântica gerou Edgar Allan Poe e Herman Melville, autores sombrios em que ainda se reconhece a inspiração original, rebelde e luciferina.

No Brasil, ah, no Brasil... é curioso com as coisas se adaptam por aqui.
O Romantismo chegou, foi importado por jovens poetas arrebatados, com ânsia de imitar a nostalgia e desejo de liberdade que angustiava os românticos europeus. Mas esta terra ainda era primitiva e exótica ela mesma! Aqui as coisas estavam para ser fundadas.
Então, algo do Romantismo se conservou, mas, se olharmos bem, aqui ele trai os seus modelos.
Em vez de rebeldia individual, o que temos é um projeto oficial, de fundar uma civilização, filiando-a em antepassados indígenas, num misto de pesquisa científica e idealização dos tempos coloniais.

O poema "Confederação dos Tamoios" de Gonçalves de Magalhães é bem curioso, em sua mistura de paganismo e religiosidade cristã: ao mesmo tempo em que louva a fé cristã, começa o poema pedindo bênção e inspiração ao Sol e aos gênios dos bosques...
"Ó Sol, hoje me inflama a mente ousada / que asas desprende pra mais altos vôos."
e logo depois:
"Tu só, religião sublime e santa / do Deus por noso amor martirizado / tu só consolador óleo verteste / nos ulcerados corações dos índios"
O grito de liberdade romântico encontra seu herói escravizado:  o índio:
"a escravidão!... ó céus! Quando do mundo / tão grande crime sumirá pra sempre? Maus, sim, nossos pais foram pra com eles / Torpe ambição, infame crueldade / os esforços mil vezes deslustraram / dos primeiros colonos lusitanos."

Num pais ainda no século XIX escravocrata, e sobretudo da escravidão africana, salta aos olhos que a literatura cria um passado em que os personagens principais são o branco e o índio.
Numa primeira leitura, é uma sociedade hipócrita que, na arte, condena uma escravidão e, na realidade, pratica outra... mas as coisas não são tão simples assim.
A escravidão, tão ou mais que uma instituição econômica, era um dado cultural: estava entranhada no modo de vida do povo brasileiro, praticada por todos os segmentos sociais (ricos, pobres, escravos libertos), ocupando todos os espaços fisicos e, principalmente, delimitando os horizontes mentais - como o Brasil pensa a si mesmo, o que quer, o que é.
É possível que o nosso romantismo tenha servido também para incutir, primeiro, o horror teórico, "poético" à escravidão indígena, que se estendeu à escravidão geral da qual a africana faz parte, e essa literatura libertária embalou os abolicionistas da geração seguinte. Voltaremos ao tema da escravidão em outro post.

Mais adiante - desculpem, não li o poema inteiro; agora até deu vontade, mas vou pinçar apenas o que topei numa "folheada digital" rápida - ahá, eis aqui um Romantismo anticristão (ou anticatólico, é um francês calvinista que debate com Anchieta, :
"Promete-vos Anchieta doutrinar-vos / e instruir-vos na lei de Cristo / mas quem de vós lhe pede esse serviço / que caro pagareis com a liberdade? (...) que outro bem estes padres vos prometem? A civilização?... fatal presente"
(é bem de Rousseau esta conversa; em Rousseau, já no limiar do iluminismo, a razão é algo identificado à natureza - idealizada, claro - e não à civilização, que "corrompe o homem"; este calvinista de Magalhães é um francês republicano...)

e mais adiante:
"Longe dessas civilizações / somos todos iguais. Ninguém de fome / e fatigado morre no asilo / a par do rico, que no fausto vive / à custa do suor da pobre gente! / Aqui o que Deus dá pertence a todos / aqui não há tiranos nem escravos / não há ferros, prisões, não há fogueiras / que eles do Santo Ofício denominam / onde frades infames, furibundos / queimam por coisas vãs as criaturas / homens, mulheres, velhos e crianças! / Ó, vergonha da Europa! e Reis e Papas / protegem essa infâmia! Ó crime horrendo! / Ó impostura atroz! Filhos dos bosques, / homens da natureza! Deus vos livre / da civilização..."

O pau na Inquisição deve ter agradado ao imperador - maçom, e sagrado por um bispo...

Depois da poesia épica evocar um passado indígena socialista onde "o que Deus dá pertence a todos", Gonçalves acrescenta, ao final do livro, uma parte "científica", com notas e glossário:
"Guaraciaba quer dizer: cabelo de sol. Guaracy, sol, e aba, cabelo. Nome de uma espécie de colibri."

Poesia e ciência caminharão de braços dados, no reinado de d.Pedro II.

Acima, vemos o esboço, o layout da página como apresentei à Lília. Não mudei quase nada, mas tudo foi redesenhado.

A página de "A confederação dos Tamoios" no quadro 04 não é a mesma em que d.Pedro fez a anotação de verdade - segundo ABDI está na página 11 da edição de 1857 do imperador. Como não tinha foto disso, improvisei com uma imagem de outra edição, a de Coimbra de 1864. A capa no quadro 03 está certa.
Na verdade, eu poderia ter feito só umas linhas e garranchos para ilustrar o livro e o manuscrito do imperador. Afinal, tudo isso que está aí é só produção de cenário e "contra-regras" - o cortinado, a estante e a escrivaninha, servem para compor um ambiente onde a ação mais importante se desenrola, de fato, no espírito de d.Pedro.
Por isso a iluminação intimista, de alcova, em oposição ao primeiro quadro, do baile, cena pública e social, onde ele era um "d.Pedro para os outros". Aqui, na intimidade, partilhamos o quarto ou gabinete de d.Pedro II em que ele se sente mais à vontade para ser ele mesmo, para si.
Mas, ao mesmo tempo, ilustra o instante em que o imperador descobre como fazer esse rico mundo interior exteriorizar-se - virar projeto de vida e de país, patrocínio, plano de governo e realidade. D.Pedro governará pela cultura e pela ciência.

Foi-se o tempo em que ele era um jovem estudioso e tímido, como testemunhará o príncipe de Joinville, seu futuro cunhado, em sua segunda visita ao Brasil.  Um sagitariano tímido, realmente não combinava...

De agora em diante, cada vez com mais segurança, ele discutirá cada um dos inúmeros campos investigados por sua imensa curiosidade; bancará pesquisas, obras literárias, quadros, espetáculos; se corresponderá com sábios e literatos do exterior, fará viagens, encantará o estrangeiro como um charmoso "rei-cidadão" constitucional e quase republicano; e compensará as obrigações do cargo de imperador com a distração de ser, de vez em quando, "mestre-escola", como um Professor Raimundo sabatinando alunos de escolas públicas.

É isto o que vai acontecer, nas 82 páginas que restam de "As Barbas do Ilustrador" em quadrinhos.

PS: estou devendo dois posts, um da viagem a Portugal (Amadora BD) e outro sobre Salvador (livro "Jorge Amado de todas as cores). Aconteceu o que eu temia: já estou novamente imerso no dia-a-dia. Vamos ver se encontro um tempo para pelo menos registrar alguns aspectos desses econtros tão prazeirosos quanto breves. abs,sp

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

pausa no Barbas (2): FLIQ em Natal

De Nova Olinda, CE, segui para Natal, RN, participar da FLIQ-Natal (Feira de Livros e Quadrinhos de Natal). Na foto acima, eu, Joseniz Moura, Rafa Coutinho, José Aguiar e a curadora da parte de Quadrinhos, a historiadora, roteirista, poeta e crítica de cinema, Milena Azevedo (que além de ter sido perfeita e simpaticíssima anfitriã, certamente fez muito mais pela FLIQ do que indicam suas atribuições oficiais...).
(acabo de ler a reportagem que Milena fez do primeiro dia da FLIQ, está minuciosa, irretocável. Caramba, ela não deixa escapar nada! Está no Garagem Hermética Quadrinhos. Não preciso escrever mais nada :)

Registro que a professora Alessandra Ferreira fez uma apresentação, mostrando o uso que fez do "D.João Carioca" (não a HQ, mas a série de TV produzida pelo canal Futura) na sala de aula, o que muito me honra (ela salvou minha palestra, pois meu pendrive não abriu e os livros não tinham chegado...).

 O primeiro ser que vi do mundo dos quadrinhos, em Natal, era de Curitiba: José Aguiar, que já conhecia de traço e de amigo em comum, Wander Antunes. José ilustrou dois álbuns de Wander que saíram na Europa (Ernie Adams), mais uma HQ com dois velhos canalhas em traço magistral.
Opa, dois amigos em comum - André Diniz, com quem José quadrinizou a "Revolta de Canudos".
O "Vigor Mortis" acima é um álbum de terror, com mais outros artistas, desdobramento do trabalho da cia. de teatro do mesmo nome. E dá-lhe assassinatos, tortura, mutilações, perversões e bizarrices.

(parêntentesis: ainda não descobri porque pessoas simpáticas, otimistas e fofinhas, quando vão fazer HQ mais autoral e adulta, sempre enveredam pela trilha mais obscura. As obras parecem dizer que no mundo só existe o Mal ou o Vazio, e os personagens ou são psicopatas, ou doentios, ou decadentes, a felicidade é inatingível... mas seus autores não parecem ver o mundo assim. É só um jogo - será sem consequências?
O Mutarelli, vá lá, tem uma biografia complicada; mas não é um ou outro, toda HQ de vanguarda é assim! É engraçado; é como se a necessidade de não ser comercial ou pasteurizado, só encontrasse inspiração no submundo e em gente violenta, demoníaca, vazia, decadente ou completamente perdida. No "Cachalote", Rafa, um mestre da fluência narrativa - seus quadrinhos realmente levam o leitor a viver o seu mundo desenhado - os personagens, todos, são seres humanos muito abaixo dos padrões de quem cria as HQs. A maioria dos que conheço pessoalmente são gente boa, inofensiva, otimista... não encontrei nenhum Rimbaud, que traficava armas no continente africano... fecho parêntesis)

Mas como disse José Aguiar - que além de bonzinho é vegetariano - "não faz quadrinhos quem não for otimista".
(adendo: preciso admitir, contudo, que fiquei realmente curioso em conhecer a história do zumbi apaixonado e do epilético que acorda no necrotério).
(adendo 2: o desenho do José Aguiar é muito sólido, aprendi muito vendo sua pasta com arte-finais e desenhadas com lapíseira).

Agora na produção potiguar, temos "Titanocracia" e "O Evangelho segundo o Sangue", histórias de Marcos Guerra, ilustradas respectivamente por Zoroleo Queiroz e Leander Moura.
De novo: mundo feio, sombrio, vazio, e sangue, sangue... socorro! quero vida! :)
E quadrinhistas jovens, simpáticos e querendo fazer da HQ um meio de vida e felicidade. Vá entender. 
(já expliquei no texto acima, pessoal, é implicância minha, não liguem; vocês estão em boa (?) companhia: Mutarelli, Marcatti, Grampá...)
(adendo #2: já li muito Edgard Alan Poe, e todas as traduções de "O Corvo". É realmente um universo fascinante... mas não é o único).

A artista Cristal Cavalcante faz esses bonequinhos bacanas de pano. Action figures ótimos para se levar em viagem de avião.

"Luz nas Trevas / Autor em Crise" é de Joseniz Moura e vai na mesma vereda perturbada, mas menos gótico, e mais humorado ou sarcástico, mais pop - parece um clown surrealista...

E chegamos no regional: cangaceiros e cordel, cordel-cordel de Kyldemir Dantas e cordel em HQ, de Beto Potiguara (""Carcará - cabra pió num há"). Acima, "Labareda" de Luiz Elson, de quem falaremos mais adiante.
Na semana anterior, de Nova Olinda, CE, fomos visitar Exu, PE, terra de Luiz Gonzaga. E perto de Nova Olinda, Assaré, terra do poeta Patativa. Gonzagão, padre Cícero e Patativa do Assaré, três gigantes da cultura nordestina, são de três lugares muito próximos da divisa de Ceará com Pernambuco.

É muito interessante ver uma "cultura completa" - um conjunto de obras e tendências que, nota-se, tem uma espécie de "unidade orgânica" muito forte: quando você vê cordel + xilogravura +  arte em couro + forró + religiosidade nordestina + culinária sertaneja + vegetação agreste + fenômeno do cangaço + coronelismo + ... - é perceptível que essas coisas, juntas, formam um universo, que tem seus valores e seu design.

Não digo com isto que uma sociedade deva se estagnar e apenas reproduzir esse modelo, para satistação nostálgica dos turistas urbanos dos grandes centros... Não, é preciso reconhecer que tanto o jegue quanto a motocicleta são instrumentos para rsolver problemas da vida, e se hoje o jegue foi substituído pela moto (no Cariri vê-se muito, mulheres dirigindo moto, com filho no colo, velhinho atrás, e bornal dos dois lados...), não é pela preservação da cultura que o sertanejo vai voltar a andar de jegue...

Não obstante, a cultura sertaneja forma um patrimônio muito coeso de artes e tradições, que é tanto rico como frágil. É bom e essencial que alguns se dediquem a preservá-la, justamente porque a sociedade por si mesma não preserva, e troca por novas formas culturais que, embora possuam força para se impor, podem não oferecer a mesma qualidade (um exemplo disso é a cultura pop urbana, essencialmente desagregadora e "feia", uma cultura baseada na fealdade, na poluição visual e na sujeira).

Minha admiração pela cultura  regional brasileira veio das leituras de Monteiro Lobato, e dos livros ilustrados por José Lanzelotti (um dos quais trazia contos coletados por Câmara Cascudo).


Fiquei agradavelmente surpreso com a revista "Maturi", projeto de seis revistas desenvolvido pelo GrupeHQ. Está no número 5 (A "Maturi" original foi uma revista underground criada em 1976 por Aucides Sales).
Ela foi mudando progressivamente a linha editorial: começou mais fantástica, com temática livre, depois adotou o lema "quadrinhos potiguares" e fixou-se nos temas histórico e regional. Pode ter ficção (entenda-se "científica" ou surreal), mas sempre com referência à história e cultura do RN.

 Um dos editores da "Maturi", Márcio Coelho, acima, foi nosso cicerone (de José Aguiar, de mim e Ana) na orla de Natal. Tem estilo elástico, vai do cômico ao realista com facilidade.
É meu "parente gráfico", nota-se que temos influências e interesses parecidos.

Gilvan Lira (na foto, veio prestigiar minha oficina) fez os quadros acima e também colorizou a HQ de cangaço na imagem anterior. Tem uma HQ dele na Maturi #03 cujo estilo lembra Mozart Couto, em que exibe habilidade e segurança no desenho e na finalização. 

 Ivan Cabral, também da "Maturi", é mais do meu planeta ainda, já que era chargista do Diário de Natal.

 Este outro da "Maturi" merece um comentário à parte. Luiz Elson, além de grande entusiasta dos motivos regionais, fez este livro para ensino de desenho que me pareceu muito bom.
Batizou de "método cacimba" e propõe ensinar qualquer um desenhar, a partir de formas simples.
O diferencial é que leva os alunos a prestar atenção nos objetos do dia a dia, próximos e existentes, a arquitetura local, etc.
De fato, até certo ponto, qualquer um pode desenvolver o desenho de observação (e as pessoas param muito antes disso, creio que que devido ao preconceito contra o desenho realista como coisa ultrapassada...). Ainda vou postar neste blog, o imperador Pedro II era um desenhista amador muito esforçado, treinado pelo pintor Felix Taunay, e vivia rascunhando nas suas viagens.

Há, porém, um degrau que, creio eu, só ultrapassa quem possui talento genuino e inato. Esta é a parte misteriosa da arte. Não é todo mundo que tem, que consegue desenhar não um conjunto de linhas, mas um "personagem", um objeto que parece ter peso, um ambiente com rofundidade etc.
Luiz Elson tem isso, fez caricaturas ótimas em minha oficina (não devido a mim, é coisa dele).


Outros regionais e históricos: "A História do Rio Grande do Norte" e "Tupis e Brobós" (Aucides Sales, Luiz Elson, Carlos Alberto, Emanoel Amaral, Gilvan Lira).

E ainda na História, "Anchietinha", com desenhos da ilustradora paraibana Luyse Costa, para uma publicação de São Paulo. O traço de Luyse lembra aqueles franceses, Sempé, delicado e lúdico.
Também estou desenvolvendo um Anchieta, que levará bastante tempo.

Acima, o presentaço que ganhei (ou troquei, por um Santô) do Geraldo Borges, de Fortaleza, essa paginona do Batman que ele desenhou em 15 minutos. Do lado, seu trabalho na Consequences da DC.
Gosto muito de ver a precisão desses desenhistas de super-herói, no traço, no domínio do desenho anatômico, da perspectiva, da clareza narrativa. Há quadrinhos dessa espécie mais poluídos, não é o caso.

Quem se apega ao nacionalismo anti-americanista deixa de apreciar essa arte robusta. Tanto os super-heróis como o mangá são escolas sólidas, em que ainda se estuda o desenho realista-expressionista, arte que exige muita dedicação para ser aprendida - o que fazer, se as faculdades de artes decretaram que o realismo é superado e kitsch?

Bem, a estética super-heróica é kitsch mesmo, como Michelângelo e seus deuses retorcidos como o Tarzan de Burne Hogarth também era. São uma exaltação do corpo humano, e se prestam a um certo tipo de narrativa heróica.

Eu gosto muito de ver a "carpintaria" dessas páginas finalizadas, a nanquim, ou como é mais comum ver no Brasil, a lápis ou lapiseira (Geraldo usa grafite 05 no rough e 03 na arte-final). Tenho muito prazer e vontade de desenhar quando vejo esse "desejo de acertar" - do qual a arte mais livre abriu mão.

E aí vai a produção poética e quadrinhística da Milena, grande figura, artista e jornalista de grande talento, grande valor. Obrigado, Milena!
Depois de tantos estímulos, volto a SP morrendo de vontade de desenhar, de voltar à produção do "Barbas"; mas dia 25/10) viajo novamente, para o festival de BD de Amadora, Portugal.

Pedro II vai continuar esperando, mas está representado, lá no festival português.
Veremos o que nos espera na terra do D.Pedro IV.

domingo, 23 de outubro de 2011

pausa no Barbas (1): oficina no Cariri

O bom filho à casa torna. Interrompo a artefinalização do "Barbas" para passar uma semana na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, a convite do meu amigo Alemberg. É a segunda vez que vou à FCG e ao Ceará, quem quiser pode conferir no meu outro blog como foi o Encontro de Quadrinhos e Animação de 2010.


O objetivo agora era dar alguns toques de HQ para os dois quadrinhistas oficiais da casa, Felipinho e José Wilson (Momô).
A oficina é patrocinada pelo Centro Cultural do Banco do Nordeste - no qual, ao final da oficina, dei uma palestra na sede em Juazeiro do Norte.

Bolei uma programação básica de desenho de observação, figura humana, perspectiva e enquadramentos.
Não foi uma oficina no estilo de "estimular a criatividade": pelo contrário, procurei transmitir a eles alguns truques e ferramentas bem práticos, para que eles desenvolvam suas habilidades e usem para desenhar o que quiserem.
De manhã, eles iam à escola; nos encontrávamos a partir das 13h00 e seguíamos até à noite.

Também por isso, a oficina destinava-se apenas aos dois desenhistas. Pois eles estão já num nível de aprendiz, já fizeram dezenas de gibis, e estão aptos a receber ensinamentos mais técnicos.
(depois, poderão retransmitir as aulas para outras crianças, o que também é uma forma de treinarem).

Mas eu abri algumas aulas a mais algumas crianças, e as meninas Tainara e Bruna fizeram questão de participar.
Abaixo, mostro como improvisei um boneco articulado para auxiliar na aula de modelo vivo - primeiro, pedi a eles que desenhassem o boneco, como um esboço; depois, olhando a pessoa. 

Abaixo, Felipinho registra o momento em que o professor fazia uma pose:

Como curiosidade, reproduzo aqui o conteúdo da oficina (de domingo, 09/10, a sexta, 14/10):
1. exercícios com sólidos (caixas, cilindros). Composição de sólidos mais complexos, a partir dos mais simples.
2. construção de cabeças; rotação.
3. perspectiva de 1 ponto de fuga.
4. mãos
5. construção de personagem, proporções.
6. personagem no ambiente (exemplo: encaixar um personagem numa mesa; desenhar o ambiente a partir de um personagem).
7. decalque de fotos, em papel vegetal, para conferir proporção do corpo humano.
8.  aula de modelo vivo, com boneco articulado de papel.
9. exercício com pena e nanquim.
10. enquadramentos.
11. expressões fisionômicas e corporais.
12. pés e calçados.
13. cabelo.
14. roupas.
15. luz e sombra - treino com refletores sobre objetos.
16. tratamento e colorização em Photoshop.

Acima, a despedida: o garoto junto de Ana é Juninho (Raimundo), que participou da primeira aula.

Esta estadia na FCG foi bem diferente da maratona de palestras do ano passado: desta vez, deu para conhecer melhor as pessoas, a região, o dia-a-dia da Casa Grande.
Consultamos dona Espedita, rezadeira, e fomos ao atelier de Espedito Seleiro, o mestre do couro.
Vimos até chover! Choveu forte em Nova Olinda na quinta-feira, de fazer enxurrada.
Hospedados na pousada da mãe de João Paulo, dona Toinha nos serviu um delicioso baião-de-dois com pequi.

Encerremos por aqui este post, que já vai muito comprido, e por mais que eu tente, jamais vai ficar completo, à altura de tudo o que vimos, e especialmente sentimos.

De Nova Olinda fomos a Juazeiro, onde dei uma palestra para um pessoal mais velho, público jovem típico de interessados em HQ, muito participantes. Mas o mundo é pequeno, e um dos que assistiram estudou na mesma escola que eu, em São Paulo - o "KK" (ETE Carlos de Campos).
Em seguida, emendamos com Natal, mas isto fica para o próximo post...

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Carica oitocentista de d.Pedro


Não sou muito paciente para fazer desenhos mais bem acabados.
Meu impulso natural, e meu treino com charges para jornal e layouts publicitários, é de "resolver" as ilustrações num instante.

Mas não posso deixar de admirar as gravuras minuciosas que divulgavam a imagem de d.Pedro II na imprensa da época, antes da fotografia. Provavelmente essa aí em cima é uma litogravura - desenhada com crayon oleoso em pedra, como um giz de cera.

Por isso fiz um exercício de cópia, sobre uma base de caricatura. É meio contrariando meu instinto, mas é um aprendizado rico. Talvez preenchendo lacunas de minha formação.

Devo dizer que é muito prazeiroso, ver o desenho tomando forma e profundidade.
De perto a gente vê como o artista cria soluções (ou aplica técnicas que outro artista criou, tanto faz, alguém criou um dia) para representar dobra de roupa, brilho em medalhas e botões, brilho em cabelo... tudo com risquinhos.
Quem se dedica ao desenho ou à caricatura realista fará bem em estudar de perto aqueles ilustradores.

E já que sou eu quem pagino a minha HQ, já fiz o exercício pensando em utilizar nesta página:

Essa quebra de estilo serve: para remeter ao grafismo do século XIX; para marcar o momento em que, enfim, o jovem imperador ganha barbas; e para quebrar a rotina da artefinalização, que já anda atrasada, e não posso bobear porque só tenho 30 semanas para finalizar as 88 páginas restantes.
Trabalha, Spacca! Slept! slept!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

e lá vem prédio!


Estamos no dia da coroação de Sua Majestade D.Pedro II, em 18 de julho de 1840.
Um edifício provisório, chamado "Varanda" - será desmontado após a cerimônia - foi construído especialmente para a solenidade.
Tenho duas imagens de referência, um desenho técnico meio borrado, e uma pintura, cujos detalhes, vendo de perto, não conferem entre si:


E "inventei" de fazer um vôo razante nas próximas duas páginas, mostrar detalhes, as esculturas da Sabedoria e da Justiça aos pés da escada, uma quadriga no alto da parte central (o "Templo") e duas bigas nos blocos laterais; são detalhes que o livro da Lília enfatiza, pois "a suntuosidade do ritual é um elemento básico para a manutenção do estado monárquico". Assim, não é um mero capricho estético: trata-se do espírito do livro, que não é puramente de História, mas de Antropologia, que procura desvendar nos rituais e na estética do Segundo Reinado os padrões de comportamento daquela sociedade.
Não tenho imagens suficientes para mostrar os detalhes a que o texto se refere; eu gostaria de mostrar ao leitor, com riqueza de detalhes, a coroação, esse grande teatro da corte. Então, o que eu não puder enxergar e copiar, terei que deduzir e imaginar a partir de fontes escritas.
Não posso inventar: existe uma descrição minuciosa da cerimônia e da Varanda, neste link: http://imperiobrazil.blogspot.com/2010/07/coroacao-de-dom-pedro-ii.html .
Só uma amostra: ""O fastígio do templo tem um baixo-relevo representando as Armas Imperiais, e no friso a seguinte inscrição: - Deus protege o Imperador e o Brasil. - o ático é coroado por uma quadriga, em cujo carro triunfante está o Gênio do Brasil, tendo na mão esquerda as rédeas dos ginetes, e na direita o cetro Imperial."
Bigas e quadrigas são motivos comuns de monumentos e arcos-de-triunfo neoclássicos. Sendo o criador ou coordenador dessas estátuas um discípulo de Debret, Manuel de Araújo Porto-Alegre, é natural que a aparência dessas estátuas siga o padrão da arquitetura européia desse período. O tal "gênio do Brasil" que conduz a quadriga deve ser um senhor parecido com esse aí abaixo, na medalha em que coroa o imperador-menino:

Juntando esses elementos, criei essa cena aérea sobre o largo do Paço, tomando o cuidado de, apesar do meu desenho não ser realista, fazer uma reconstituição plausível, dentro do que seria possível ver dentro desse raio de visão.
Com um pouco de exagero, claro (inspirado na escola Disney italiana, que os fãs costumam identificar com Cavazzano, criador de perspectivas ousadas; mas que eu conheci no traço dos artistas mais antigos como Romano Scarpa e Giovan Batista Carpi), esta vista aérea permite que se veja em primeiro plano a quadriga do "gênio do Brasil", mix de ícone greco-romano com elementos indígenas (mistura que será assunto de todo um capítulo mais adiante).

A geografia, o Pão de Açúcar ao longe e o extinto Morro do Castelo à direita estão mais ou menos dentro do que é possível ver, desse ângulo. Para o Pão de Açúcar, consultei mapas do Rio e, traçando uma linha desde a Praça 15 até ele, teria uma vista do rochedo semelhante à que podemos ver a partir do aeroporto Santos Dumont ou da Glória. Algumas fotografias e uma simulação no Google Earth serviram de base para esse panorama:
Além disso, usei diversas fotos do Paço Imperial, incluindo maquetes; ilustrações do Morro do Castelo (demolido em 1922) feitas pelos viajantes (Rugendas, Thomas Ender e outros); e uma magnífica reconstrução de Guta (Carlos Gustavo Nunes Pereira) mostrando o Porto do Rio - o ângulo do Pão de Açúcar e do Morro do Castelo é mais ou menos o mesmo.


A terceira página é no estilo "enciclopédia", em que eu redesenho a fronte da "Varanda", improvisando um pouco nos detalhes que não consegui captar, mais duas estátuas representando os rios Amazonas e Prata, os extremos do Brasil naquele tempo (é como dizer hoje "do Oiapoque ao Chuí"), das quais eu também não tinha referência - inspirei-me nas estátuas dos rios do monumento de D.Pedro I na praça Tiradentes, um pouco mais rígidas (mais "gregas", geometrizadas, e menos "românticas), aliviando o rigor com o costumeiro traço caricato que tem "licença para brincar".
As estátuas das deusas da Sabedoria e da Justiça provavelmente não eram como essas que desenhei, mas estas estão dentro do espírito e do imaginário dos artistas que decoraram a festa do jovem rei.
Imaginei que todas essas alegorias seguiam modelos europeus. Dito e feito. A representação de rios em forma de estátuas é bastante comum, praticamente um gênero. Baseei-me nestas duas - dos rios Nilo e Ródano - para recriar, com um jeito mais clássico e mais antigo, a estátua do rio Amazonas (sobre  mesmo jacaré que vemos no monumento da praça Tiradentes) e inventar uma alegoria semelhante do rio Prata, usando um índio Charrua e uma ema (porque naquele monumento não temos mais o Prata, só o Paraná, São Francisco e Madeira.

Abaixo, imagens de Palas-Athena (com seu escudo com a cabeça de Medusa) e Themis, a deusa da Justiça, representada ora com venda, ora sem.


Finalmente, nesta gravura abaixo, do tempo da Coroação, temos alegorias semelhantes às das nossas estátuas. Será que elas eram parecidas com esse desenho? Será que o rio Prata era representado por uma índia? Não sei, não consegui saber.
O hábito de representar mitologicamente conceitos, ideais, governos, países e até rios, está na raiz das nossas ilustrações e charges modernas. Quando eu desenhava o "dragão da inflação" e o "leão do imposto de renda" nas charges, era a mesma técnica de representação.
Fazer estas reconstruções históricas ajuda a entender como funcionava a imaginação da época, sua sensibilidade artística, que forma davam aos seus valores e ideais.