imagens, registros e reflexões sobre a versão em HQ de "As Barbas do Imperador" de Lília Moritz Schwarcz

domingo, 8 de abril de 2012

O CRONISTA ARTUR DE CARVALHO (1962 - 2012)

Despretensiosamente, como sempre, Artur escolheu morrer na mesma semana em que nos deixaram Chico Anísio e Millôr Fernandes, só para ficar à sombra dessas duas sumidades do humor, a quem ainda devo prestar as respectivas e merecidas homenagens.


A despretensão não é necessariamente sinal de modéstia, falta de auto-estima ou timidez; no caso deste discreto gênero literário, a crônica, a despretensão é o ingrediente indispensável: o cronista é o observador por excelência, aquele que assiste o mundo passar e registra seu espanto, sua perplexidade.

Porém, quem conheceu o Artur, sabe que sua presença e sua voz não tinham nada de discretas...
Artur era do interior de SP (Campinas) e mudou-se para o interiorzão (Votuporanga); foi ser sócio do cunhado numa pizzaria e, como relata em seu livro "O incrível homem de quatro olhos", quis proporcionar à filha Gabi uma infância parecida com a sua, de brincar em ruas gostosas e despreocupadas, que Campinas já não podia oferecer. Para os arrivistas e loucos pelo sucesso, que buscam brilhar nas capitais, esse é um movimento difícil de entender - é como se Chico Anísio tivesse ido do Rio para Maranguape e Millôr de Ipanema para o Méier.
(ilustração de Artur)

Mas voltemos à crônica. A esse recuo físico, providencial, da metrópole para a província, corresponde um recuo do observador. O que estou querendo dizer é que a crônica, escrever uma crônica, é um modo de entendimento, um jeito especial da inteligência captar a realidade - não um modo impositivo, controlador, mas o de uma inteligência aberta às coisas e pessoas mais variadas. O cronista não escolhe assunto com muito cuidado, o assunto é o que aparecer na frente - é o que alguém falou, é uma idéia que ele teve, é uma moda, é o que todos estão falando no momento ou algo que só ele está prestando atenção. O cronista é um cara atento para ser escolhido por um assunto.

E com que autoridade aborda um assunto o cronista? Nenhuma! Até Machado de Assis, que além de gênio da grande literatura também foi cronista de primeira, nas crônicas escrevia com a falta de cerimônia de um passageiro de bonde puxando conversa com o vizinho do lado.

E, no entanto, apesar da atenção do cronista estar generosamente aberta a todos os assuntos, a crônica resulta única, coesa, bem amarrada como toda obra literária digna do nome precisa ser, e esse amarramento vem da sinceridade com que o cronista se coloca na crônica, como observador. Sinceridade é outro ingrediente fundamental da crônica.


(PS - ao reler este post, isto me pareceu mal explicado: como é que a sinceridade pode conferir unidade a um texto? É simples: o observador sincero sempre se inclui na observação; o "eu" possui unidade natural, assim como a existência também possui unidade - nós vivemos no mesmo mundo, não em dois; portanto, ao referir-se sempre às suas memórias com sinceridade, o indivíduo confere unidade ao seu testemunho - o insincero se divide em dois, três etc. Porém, admito: um escritor profissional também possui técnicas e macetes para "amarrar" um texto e botar um término em suas reflexões, por mais fragmentárias que possam ser. O Artur, além dessa capacidade ou treino que qualquer escritor competente possui, ainda tinha, e é isto que estou valorizando aqui, coerência existencial).


Mas, espere aí: uma das marcas do Artur eram as "pegadinhas", mentiras e fingimentos que ele às vezes colocava nos seus escritos - como a crônica em forma de reportagem, que anunciava a descoberta de um homem de quatro olhos, e metade da cidade acreditou. Como, então, falar de sinceridade?

A sinceridade a que me refiro é a de um ser humano falando para outro; consciente do que sabe e do que não sabe. Muita gente escreve em nome de uma verdade hipotética, em nome de uma teoria científica, em nome da "Razão", em nome de uma utopia, da justiça, da História etc. Artur, muito honestamente, falava sempre em nome dele mesmo. E sempre queria conferir se o outro teve experiência semelhante: "sabe quando acontece tal coisa? Então, nessas horas eu sempre acho que xxxx. Não é assim com você?" Parece banal; mas esta é uma atitude rara. Artur tinha o hábito de sempre relacionar opiniões e conceitos com a experiência concreta que ele vivia; de conferir as idéias com a realidade da experiência pessoal. E, frequentemente, ele se deparava com a própria ignorância e confessava: "sei lá". 

"Sei lá" - quanta gente devia confessar, socraticamente, que não sabe o que não sabe? É sobre esse fundo de incerteza que podemos destacar as coisas que sabemos que são boas e verdadeiras. Ateu, nem o ateísmo Artur professava com convicção. A honestidade intelectual o impediu de ser um ateu convicto - ele percebeu que o ateísmo exigia uma certeza negativa impossível de ter. 


A vida é assim, Artur. Como você ironicamente já sabia ao batizar seu segundo livro, "quando você menos espera... PÁ". Conversamos muito pouco, quantos encontros tivemos, uns dez? Quinze?

Haveria assunto para mil conversas. O consolo é que você escrevia como conversava; então, é possível perceber sua presença quando o leio - porque você soube rechear palavras com experiência vivida. Você não foi um fazedor de "textos" - até suas mentiras eram recheadas de vida e verdade.




Foi bom te conhecer, Artur, Deus te guie e te ilumine -  a depender da sinceridade e da auto-confissão, até os ateus merecem o céu.

(seguem três crônicas de Artur de Carvalho, tiradas do seu blog http://arturdecarvalho.wordpress.com/ )

veja também:
TRÊS CRÔNICAS DE ARTUR DE CARVALHO

SOS SOS SOS SOS SOS SOS
(22/11/2011)


Quando uma comissão de países europeus definiu o chamado Código Morse Internacional, incluiu-se um sinal de pedido de socorro, fácil de ser lembrado em situações de emergência mesmo por pessoas com pouco ou nenhum conhecimento de telegrafia. Era uma simples combinação de duas letras, cada uma codificada por três sinais idênticos: três toques curtos para S, três toques longos para O e, novamente, três toques curtos para S, sem pontuação.

Tudo bem. Com esse monte de iPad, iPod, smartphones, computadores e o escambal, hoje em dia, ninguém mais usa telégrafo. Ou quase ninguém. Mas o sinal de SOS pegou, e se tornou uma espécie de ícone, reconhecido por qualquer moleque de dez anos. Bem, outro dia,  folheando uma revista em quadrinhos antiga, fiquei olhando o tal sinal de SOS, desenhado pairando sobre o mar. Uma onomatopéia saindo de um navio prestes a afundar.


E reparei numa coisa que nunca tinha reparado antes. SOS, o sinal de socorro, se escreve exatamente com as mesmas letras que se usa para escrever “sós”.  SÓS de sozinhos, sabe? De solidão. Que vem do Latim “solus” e não tem nada a ver com telégrafo, código Morse ou qualquer coisa assim. Não é extremamente irônico que as mesmas letras, atravessando caminhos tão diferentes, acabem desembocando em significados tão próximos como “solidão”  e “socorro”? Pois não é essa a história de nossa vida? Uma busca incessante por alguém ou alguma coisa que nos ajude a sair desse isolamento ao qual todos fomos condenados?


Outro dia, me peguei rezando. É, RE-ZAN-DO. E rezando um Pai Nosso, daqueles bem clássicos. Seguido de uma Ave Maria. No embalo, acho que rezei quase um terço. Não sei o que é. Talvez seja a idade. Ou esse monte de doença que deu para aparecer em mim, vindas sabe-se lá de onde. A verdade é que, chega uma hora, a gente se cansa e se assusta com essa solidão a que estamos confinados, e Deus é uma idéia excepcionalmente boa para ser menosprezada.


E, apesar da esposa fazer de tudo pela gente, desde cafuné até curativos. Apesar da filha me levar e buscar no emprego, como eu fazia com ela no tempo da escola. E apesar do meu neto aparecer com sorrisos nas horas mais inesperadas, fazendo o restante do mundo simplesmente derreter ao redor dele. Apesar de tudo isso ainda me sinto extrema e extenuantemente só aqui por dentro e, na dúvida, rezar nunca fez mal para ninguém.


Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?


Sei lá. Eu acho que eu tenho algum problema. Segundo todos os maiores filósofos, cientistas, religiosos e até o sapateiro ali da esquina, as grandes dúvidas da humanidade se resumem a essas aí, do título e, quando respondidas, farão da vida do ser humano uma espécie de paraíso sobre a Terra. Pois, para ser sincero, eu acho que são umas perguntas bem idiotas. Acho até que são meio simplórias. Para tentar me explicar melhor, vamos começar pela primeira pergunta. Quem somos?


Oras bolas. Nós somos nós, ué. Não sei o que é que esse pessoal fica arrumando tanta complicação nessa história. Se você não sabe nem quem é, ou está com amnésia ou tem sérios problemas mentais. No caso, tomar uns remédios ou algumas sessões com um bom psicanalista devem resolver ou, pelo menos, atenuar o seu problema. E se não resolver também, que se dane. Se você nem sabe quem é, não deve nem saber ler, e se conseguiu aprender a ler, não deve estar entendendo bulhufas do que eu estou falando, e muito menos está preocupado com esse papo-furado de filósofo.


Então, vamos para a segunda questão. De onde viemos?


Olha. Eu sinto muito mas, se com a idade que você está, você ainda não sabe de onde veio, a coisa está realmente meio complicada. Mas eu vou tentar explicar aqui, o mais delicadamente possível, para não chocar a sua natureza inocente. Para começar, a sua mãe e o seu pai não são virgens. Não, não me olhe com essa cara de espanto. Pelo menos uma vez na vida, com toda a certeza do mundo (no caso de você não ser um filho adotivo, evidentemente), seu pai e sua mãe transaram. Isso mesmo, rapaz. Fizeram SEXO. E aí sua mãe engravidou, ficou barriguda e, respondendo à pergunta inicial, foi daí mesmo que você veio. Direto da barriga da sua mãe para o mundo, passando antes por lugares que você nem imagina, mas eu também não vou entrar aqui nesses detalhes técnicos para não deixá-lo ainda mais chocado do que já deve estar.


E agora, para terminar, vamos logo para a terceira e última pergunta que tanto vem atormentando nossa espécie. Para onde vamos?


Olha, se você, caro leitor, for uma morena de olhos verdes, com aí seus vinte e seis, vinte sete anos, nós podemos combinar um cineminha e um jantar para mais tarde. Se não for, eu, particularmente, pretendo ir para a cama e dormir um pouco, que a noite já se faz tarde.


6 coisas que me decepcionaram e que eu não achei nada para colocar no lugar


1- A Esquerda
A Esquerda, como todos sabemos, era uma delícia. Era moderna, era ousada, era honesta e era, acima de tudo, justa. A gente lia sobre os grandes heróis, da história ou da ficção, e todos eles pareciam ser de esquerda também. O Robin Hood tirava dos ricos para dar para os pobres. O Super-Homem lutava pelos fracos e oprimidos. Até Jesus Cristo, oras, se você pensar bem, era meio comunista. Bem, aí a Esquerda assumiu o poder, e a gente viu que eles não eram tão diferentes assim dos outros. E, além do mais, ser de Esquerda hoje não é mais ser da oposição. Minha vida toda eu fui oposição. E para ser de oposição, hoje, eu preciso ser… de Direita?


2- A Direita
Bem, com a Direita eu já havia me decepcionado aos 16 anos de idade, durante o regime militar e tudo o mais, e não vai ser agora, com 49, que eu vou voltar atrás.


3- A Religião
Não dá para acreditar numa religião que acha que só ela está certa. E todas as religiões acham isso. Mas nem é por isso a minha decepção. A minha decepção é ver os caras indo lá, na missa aos domingos, e saindo de lá não dando a mínima para o que ouviram. Pombas, se eles acreditam naquilo que ouviram, deviam sair de lá pregando também. E, se não acreditam, deviam se tornar ateus, como eu me tornei.


4- O Ateísmo
Minha decepção com o ateísmo está acontecendo agora, depois de velho. Eu até que me sustentei bem sendo ateu durante a juventude, mas quando a gente vai ficando velho, vendo a morte cada dia mais de perto, não tem jeito. A gente sempre começa a ter esperança numa vida eterna, ou coisa parecida. Chega até a arriscar uns Pai-Nosso antes de dormir. A gente se sente muito sozinho sendo ateu.


5- A Imprensa
Eu sempre achei muito importante ver jornais, revistas, TV, blogs, ou seja lá de que forma se transmita notícias. Um cidadão tem que estar consciente das coisas que acontecem ao seu redor. Com o passar dos anos, no entanto, a imprensa já não é mais aquela. A imprensa, hoje, luta pela sobrevivência. E, você sabe: um cara faz qualquer coisa para sobreviver.

6- A Ignorância
Deixar de ler, no entanto, também é decepcionante. É só você ficar ouvindo a conversa de dois garotos normais, de 14 anos, para você ver. Eles conseguem conversar durante uma hora e meia no celular, mandar 20 torpedos, entrar no Messenger e, quando você pergunta sobre o que eles estavam falando, eles olham para cima, coçam o queixo, e respondem, meio abobalhados: “Nada”.

Artur de Carvalho, 1962 - 2012